sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O TEATRO DO IMPEACHMENT por Chico Castro





Na defesa que fez bravamente do seu mandato na tribuna do Senado, Dilma Rousseff citou um fato histórico ocorrido na França no século XIX e que entrou para a  história como o 18 Brumário de Luís Napoleão. Trata-se de um golpe de Estado [implantação do estado de sítio] dado pelo sobrinho do Napoleão Bonaparte em dezembro de 1851. O vigarista e aventureiro havia sido o primeiro presidente republicano eleito pelo voto direto depois dos episódios de 1848. Em 1852, derruba finalmente a república para fundar o Segundo Império.  A primeira república fora proclamada em 1792 pelo povo em decorrência da queda da monarquia em 1789.

Luís Napoleão queria ficar mais tempo no poder para além das decisões anteriormente tomadas pela a Assembleia Nacional Constituinte. A Constituição republicana não admitia a reeleição presidencial. O pomo da discórdia foi o estopim para o golpe de Estado. A burguesia aliada a seus antigos adversários se juntaram convenientemente para impedir  os avanços que poderiam advir da segunda república recém-fundada. Satisfeita, as elites se acalmaram em face de que, daquele momento em diante, o descontentamento crescente do povo e dos fundadores da nova república, poderiam ser facilmente contornados  pela força das armas.

Nem de longe se pode comparar os acontecimentos de Paris com o impeachment de Dilma Rousseff. Mas em ambos os casos a patuscada foi geral. A ruptura jurídica chancelada pela elite conservadora francesa na pessoa de Luís Bonaparte, depois imperador Napoleão III, visava acabar com a possibilidade com uma governabilidade liderada por trabalhadores, republicanos e liberais. Já naquela época,  o tripé Liberdade, Igualdade e Fraternidade, dava claros sinais de que servia apenas como cortina de fumaça para esconder o sistema de opressão e de exclusão. Para a massa ativa dos trabalhadores se reservava apenas o pesado dever de “produzir ouro para os faraós para que se paguem as dívidas da família Bonaparte”. Qualquer semelhança com o destino funesto da plebe brasileira não é uma mera coincidência!

  Karl Marx, que na verdade era um profundo conhecedor da política do seu tempo, escreveu um ensaio  intitulado 18 Brumário de Luís Bonaparte, no qual, logo no início, apresenta  uma expressão posteriormente adotada pelos cientistas sociais. “Os fatos e os personagens de grande importância na história”, escrevia o filósofo alemão inspirado em Hegel, [aparecem] “pela primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Marx estava se referindo aos golpistas Napoleão Bonaparte, o corso, e ao sobrinho Luís Bonaparte. O autor de O Capital achava que a Revolução de 1789 tão decantada em prosa e verso como um estandarte de renovação na política,   substituíra, a grosso modo, o  feudalismo monárquico por uma república destinada a “instaurar a moderna sociedade burguesa”. Estava corretíssimo o famoso barbudo.

Pois por assim dizer, os dois regimes, diferentes na aparência, deixavam igualmente de lado, de forma aguda e soberana, as pretensões de inserção das classes populares nos rumos que a nação poderia tomar. Os que estavam alienados pelo brutal sistema da livre concorrência, pela exploração mais racionalizada da terra e pela potencialização predatória das forças produtivas, só restava assistir ao espetáculo  triunfante dos princípios básicos da  vitória da burguesia liberal, que se assentara sobre os ossos  guardados no armário do mundo rural onde se sustentava o sistema monárquico e conservador.

A contradição chegou a auge em 1848. À proporção que o progresso alcançado pela indústria crescia a olhos vistos, a situação dos trabalhadores se tornava a cada dia mais grave e conflitante, em função do fechamento de empresas, a acentuada queda do nível salarial e pelo desemprego galopante. A revolta popular seria inevitável. O sistema corria sério risco de sobrevivência com o povo  desfraldando a bandeira de suas mais legítimas aspirações . Nenhum poder suporta a ideia do povão ocupando as ruas. Para isso, veio a república para colocar panos quentes nos desmandos da monarquia restaurada.

A queda do rei Luís Felipe a 24 de fevereiro de 1848 significou a instalação da Assembleia Nacional Constituinte e do Governo Provisório. Neste se apossaram a burguesia republicana, os liberais  e uma parte dos trabalhadores socialistas. O escopo do novo projeto republicano  ia de encontro aos interesses da aristocracia financeira. Inicialmente, o sistema permitiu que “a parte do leão [os direitos sociais dos trabalhadores] fosse reconhecida pelo Governo”. Na monarquia,  o rei  governava em nome da aristocracia, enquanto que na república a burguesia “reinava” em nome do povo. Em ambos os casos, tanto na monarquia absoluta quanto na democracia exclusivista, os pobres ficaram no purgatório das grandes decisões.

O golpe de 02 de dezembro de 1851 foi perpetrado pelo trapaceiro Luis Bonaparte [para acabar com  baionetas pretorianas as liberdades individuais, políticas, religiosas e educacionais de 1848], se deu, ainda de acordo  com Marx, para pôr fim  “às concessões liberais que lhe foram arrancadas[do povo] através de séculos de luta”. A  burguesia republicana fundou a segunda república para si, e não para atender aos interesses gerais da sociedade. Mas, para que a diabólica trama fosse aplicada era preciso retirar da cena política o proletariado descontente. Logo, e sem nenhum pejo,  a burguesia, aliada novamente aos antigos latifundiários monarquistas,  desembainhou a espada para fulminar o ensaio  republicano de inclusão social.

 A  imposição do golpe de Estado  engendrado pelo próprio governante no exercício do poder  dava largos passos para trás, anulando o ponto inicial onde se firmara os primeiros instantes de uma sociedade mais liberal sonhada pelos carbonários de 1789. Marx não entendia como uma nação com 36 milhões de habitantes pudesse voltar ao “cativeiro por três cavalheiros da indústria.” Isso demonstrava claramente que em pleno século XIX o poder de convencimento da imprensa já era dominado por interesses corporativistas.

No nosso caso, uma sociedade ambivalente e pantanosa, marcada por uma oceânica concentração de riquezas, a política cercou-se ainda pelo muro da mais escandalosa insensibilidade moral. O pacto social transformou a realidade em ficção e a ficção em realidade. O reflexo disso, é que poucos se incomodam com o destino dos outros. A perda da privacidade transformou as pessoas em mercadorias ambulantes, e a cultura pré-fabricada do medo está levando todo mundo a não acreditar mais em ninguém. No estado democrático de direito são os cidadãos e cidadãs que controlam os que estão no poder, e não o contrário. Não é o voto que simplesmente legitima o vitorioso numa eleição. É o respeito à democracia que dá a amplitude e ratifica o voto.

Se foi golpe ou não, mormente ser no Brasil a interpretação mais importante do que a lei, tanto partindo da acusação quanto da defesa, ficou notória a incapacidade da política em resolver as crises, senão inclinando-se para as circunstâncias absolutamente convenientes de cada período da história.  Nessas condições discricionárias, sempre foram abertas as portas para o surgimento de líderes medíocres e oportunistas para desempenharem o vergonhoso e triste papel de heróis e salvadores da pátria. Se são os seres humanos que fazem a história eles a fazem segundo a tradição deixada pelo passado. E no Brasil, assim como alhures, o passado sempre condenou a classe política.


Chico Castro, 62, é poeta e historiador.



Nenhum comentário:

Postar um comentário