Na
defesa que fez bravamente do seu mandato na tribuna do Senado, Dilma Rousseff
citou um fato histórico ocorrido na França no século XIX e que entrou para
a história como o 18 Brumário de Luís Napoleão. Trata-se de um golpe de
Estado [implantação do estado de sítio] dado pelo sobrinho do Napoleão
Bonaparte em dezembro de 1851. O vigarista e aventureiro havia sido o primeiro
presidente republicano eleito pelo voto direto depois dos episódios de 1848. Em
1852, derruba finalmente a república para fundar o Segundo Império. A
primeira república fora proclamada em 1792 pelo povo em decorrência da queda da
monarquia em 1789.
Luís
Napoleão queria ficar mais tempo no poder para além das decisões anteriormente
tomadas pela a Assembleia Nacional Constituinte. A Constituição republicana não
admitia a reeleição presidencial. O pomo da discórdia foi o estopim para o
golpe de Estado. A burguesia aliada a seus antigos adversários se juntaram
convenientemente para impedir os avanços que poderiam advir da segunda
república recém-fundada. Satisfeita, as elites se acalmaram em face de que,
daquele momento em diante, o descontentamento crescente do povo e dos
fundadores da nova república, poderiam ser facilmente contornados pela
força das armas.
Nem
de longe se pode comparar os acontecimentos de Paris com o impeachment de Dilma
Rousseff. Mas em ambos os casos a patuscada foi geral. A ruptura jurídica
chancelada pela elite conservadora francesa na pessoa de Luís Bonaparte, depois
imperador Napoleão III, visava acabar com a possibilidade com uma
governabilidade liderada por trabalhadores, republicanos e liberais. Já naquela
época, o tripé Liberdade, Igualdade e Fraternidade, dava claros sinais de
que servia apenas como cortina de fumaça para esconder o sistema de opressão e
de exclusão. Para a massa ativa dos trabalhadores se reservava apenas o pesado
dever de “produzir ouro para os faraós para que se paguem as dívidas da
família Bonaparte”. Qualquer semelhança com o destino funesto da
plebe brasileira não é uma mera coincidência!
Karl
Marx, que na verdade era um profundo conhecedor da política do seu tempo,
escreveu um ensaio intitulado 18 Brumário de Luís Bonaparte, no qual,
logo no início, apresenta uma expressão posteriormente adotada pelos
cientistas sociais. “Os fatos e os personagens de grande importância na
história”, escrevia o filósofo alemão inspirado em Hegel, [aparecem] “pela
primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Marx estava se referindo aos
golpistas Napoleão Bonaparte, o corso, e ao sobrinho Luís Bonaparte. O autor de
O Capital achava que a Revolução de 1789 tão decantada em prosa e verso como um
estandarte de renovação na política, substituíra, a grosso modo, o
feudalismo monárquico por uma república destinada a “instaurar a moderna
sociedade burguesa”. Estava corretíssimo o famoso barbudo.
Pois
por assim dizer, os dois regimes, diferentes na aparência, deixavam igualmente
de lado, de forma aguda e soberana, as pretensões de inserção das classes
populares nos rumos que a nação poderia tomar. Os que estavam alienados pelo
brutal sistema da livre concorrência, pela exploração mais racionalizada da
terra e pela potencialização predatória das forças produtivas, só restava
assistir ao espetáculo triunfante dos princípios básicos da vitória
da burguesia liberal, que se assentara sobre os ossos guardados no armário
do mundo rural onde se sustentava o sistema monárquico e conservador.
A
contradição chegou a auge em 1848. À proporção que o progresso alcançado pela
indústria crescia a olhos vistos, a situação dos trabalhadores se tornava a
cada dia mais grave e conflitante, em função do fechamento de empresas, a
acentuada queda do nível salarial e pelo desemprego galopante. A revolta
popular seria inevitável. O sistema corria sério risco de sobrevivência com o
povo desfraldando a bandeira de suas mais legítimas aspirações . Nenhum poder
suporta a ideia do povão ocupando as ruas. Para isso, veio a república para
colocar panos quentes nos desmandos da monarquia restaurada.
A
queda do rei Luís Felipe a 24 de fevereiro de 1848 significou a instalação da Assembleia Nacional Constituinte e do Governo Provisório. Neste se apossaram a
burguesia republicana, os liberais e uma parte dos trabalhadores
socialistas. O escopo do novo projeto republicano ia de encontro aos
interesses da aristocracia financeira. Inicialmente, o sistema permitiu que “a
parte do leão [os direitos sociais dos trabalhadores] fosse reconhecida pelo
Governo”. Na monarquia, o rei governava em nome da aristocracia,
enquanto que na república a burguesia “reinava” em nome do povo. Em ambos os
casos, tanto na monarquia absoluta quanto na democracia exclusivista, os pobres
ficaram no purgatório das grandes decisões.
O
golpe de 02 de dezembro de 1851 foi perpetrado pelo trapaceiro Luis Bonaparte
[para acabar com baionetas pretorianas as liberdades individuais,
políticas, religiosas e educacionais de 1848], se deu, ainda de acordo com
Marx, para pôr fim “às concessões liberais que lhe foram arrancadas[do
povo] através de séculos de luta”. A burguesia republicana fundou a
segunda república para si, e não para atender aos interesses gerais da
sociedade. Mas, para que a diabólica trama fosse aplicada era preciso retirar
da cena política o proletariado descontente. Logo, e sem nenhum pejo, a
burguesia, aliada novamente aos antigos latifundiários monarquistas,
desembainhou a espada para fulminar o ensaio republicano de inclusão
social.
A
imposição do golpe de Estado engendrado pelo próprio governante no
exercício do poder dava largos passos para trás, anulando o ponto inicial
onde se firmara os primeiros instantes de uma sociedade mais liberal sonhada
pelos carbonários de 1789. Marx não entendia como uma nação com 36 milhões de
habitantes pudesse voltar ao “cativeiro por três cavalheiros da indústria.”
Isso demonstrava claramente que em pleno século XIX o poder de convencimento da
imprensa já era dominado por interesses corporativistas.
No
nosso caso, uma sociedade ambivalente e pantanosa, marcada por uma oceânica
concentração de riquezas, a política cercou-se ainda pelo muro da mais
escandalosa insensibilidade moral. O pacto social transformou a realidade em
ficção e a ficção em realidade. O reflexo disso, é que poucos se incomodam com
o destino dos outros. A perda da privacidade transformou as pessoas em
mercadorias ambulantes, e a cultura pré-fabricada do medo está levando todo
mundo a não acreditar mais em ninguém. No estado democrático de direito são os
cidadãos e cidadãs que controlam os que estão no poder, e não o
contrário. Não é o voto que simplesmente legitima o vitorioso numa eleição. É o
respeito à democracia que dá a amplitude e ratifica o voto.
Se
foi golpe ou não, mormente ser no Brasil a interpretação mais importante do que
a lei, tanto partindo da acusação quanto da defesa, ficou notória a
incapacidade da política em resolver as crises, senão inclinando-se para as
circunstâncias absolutamente convenientes de cada período da história.
Nessas condições discricionárias, sempre foram abertas as portas para o
surgimento de líderes medíocres e oportunistas para desempenharem o vergonhoso
e triste papel de heróis e salvadores da pátria. Se são os seres humanos que
fazem a história eles a fazem segundo a tradição deixada pelo passado. E no
Brasil, assim como alhures, o passado sempre condenou a classe política.
Chico
Castro, 62, é poeta e historiador.
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