Em 1897, Sigmund Freud já trabalhava exaustivamente sobre o
horror do incesto. À época, suas preocupações se voltavam para o binômio
existente entre os avanços da civilização e a repressão dos instintos. Bem mais
tarde, em 1912/1913, publicava um monumental ensaio intitulado Totem e Tabu. Na
realidade, o pai da Psicanálise, para além do vasto conhecimento que possuía da
alma humana, era igualmente versado em pré-história e em Arqueologia Social.
Viciado em cocaína, morreu em Londres, de câncer no palato, em 1939, aos 83
anos de idade. Como psicanalista, ele era um grande escritor.
Em Totem e Tabu, influenciado por Wilhelm Wundt e Carl Gustav Jung, Freud analisou as categorias o universo
antropológico de saberes antigos, passando pela história dos povos aborígenes
da Austrália, da América e da África. Ao estudar esses povos, pôde perceber a
existência de uma relação extremamente respeitosa entre o clã e o totemismo, pois os membros de certas tribos
acreditavam que a origem deles residia na figura do totem. Para além dos casos
clínicos, não desprezava a cultura dos
povos mais “atrasados” do mundo, a ponto de procurar entendê-los a fim de captar psicanaliticamente a angústia
e o mal-estar das sociedades mais industrialmente avançadas do seu tempo.
Mas, o que é um totem?
Originalmente, o totemismo era a religião das castas
primitivas. Mantinha viva a base da organização social. O totem podia
ser um animal, um vegetal ou um fenômeno
natural, materialmente representado. Visto como um símbolo sagrado, criava uma relação de medo ou respeito aos que o
cultuavam. Ao mesmo tempo em que o sistema totêmico dava proteção ao corpo
social, exigia que algumas restrições
fossem fielmente cumpridas, como, por exemplo, a não permissão de relações
sexuais impróprias ou casamentos
entre integrantes do mesmo clã. No Deuterenômio, livro escrito por Moisés
(cap.7,3-4), Deus proibia que um hebreu se casasse com uma mulher
“estrangeira”. Os semitas praticavam a endogamia, cerimônias de casamento entre
pessoas aparentadas, ao passo que os
nativos estudados por Freud prevalecia a exogamia.
Os aborígenes
anteriores aos semitas, criaram a exogamia justamente para não abalar o
equilíbrio social exigido pelos preceitos totêmicas, aliás, ainda vigorantes
nos dias de hoje, que admite, em tese, apenas o casamento entre pessoas de
“famílias diferentes”. Descumprir a regra
resultava na morte automática do infrator ou infratores. Daí o horror
pelo incesto, a priori, vigente na mentalidade do século XXI. Os judeus, mais
tribais, achavam que o filho ou a filha deveriam ficar sob a proteção da sombra
paterna. No entanto, a prescrição levítica não obstou que Salomão, filho do rei
Davi,se casasse com a filha do faraó do Egito, tradicional inimigo de Israel.
Por sua vez, as filhas de Ló, após a saída de Sodoma e Gomorra, o embriagarem
com vinho e mantiveram relações sexuais com o próprio pai, nascendo-lhes a
etnia moabita e amonita (Gênesis,cap.19,32).
Qual o significado de
um tabu?
Por detrás de qualquer totem havia um tabu ou vários tabus. O
totem não pode ser tocado, nem o tabu pode ser quebrado. Mas o que é um
tabu? Via de regra, é uma série de
normas acerca do que se pode ou não ser
feito. Freud entendia ser desconhecida a origem do tabu, e que, enquanto para
alguns parece ser algo sagrado ou impuro, violento ou natural, sádico ou santo,
para outros se insere dentro de um
esquema da mais pura normalidade. Ao
contrário das leis de Deus dada a Moisés no Sinai, o tabu não encontra guarida na escrita. A
interdição servia para proteger os fracos e os fortes, os chefes e os
sacerdotes, as mulheres e as crianças, à medida que pede acautelamento contra o
manuseio de cadáveres, a ingestão de certos alimentos e bebidas. A quebra de um
tabu forjou o nascimento dos primeiros tribunais
da história.
Achamos que os selvagens
eram mortais e cruéis com os seus inimigos. Porém, somos atualmente mais
sentenciosos e perversos com os nossos rivais. Freud verificou que na ilha de
Timor, na Indonésia, quando guerreiros
voltavam vitoriosos de uma batalha, traziam as cabeças dos vencidos à mostra.
Porém, ao chegarem à tribo, se submetiam a alguns rituais de purificação para
amenizar o sofrimento pela alma dos
derrotados. Segundo o costume, a dança e o canto não eram a comemoração
da presumida vitória, mas um rito de perdão pela morte dos infelizes: “Não
tenhais raiva”, pranteavam os vencedores, “porque vossa cabeça está aqui
conosco; se tivéssemos tido menos sorte, nossas cabeças poderiam estar agora
expostas em vossa aldeia. Não seria melhor que tivéssemos permanecido amigos”?
O tabu relacionado aos governantes era bem mais severo. Eles
não deveriam ser apenas “protegidos, mas também se deve proteger-se contra
eles”. O contato direto com os mandatários podia ser benéfico ou maléfico. O
poder de cura se manifestava num leve toque no doente ou no necessitado de
cuidados. Mas, em muitos casos, poderia acontecer uma tragédia, como por
exemplo, entre algumas tribos africanas, entrar alguém na casa de um sacerdote,
poderia ocasionar grandes aflições ou até mesmo a morte a quem chegasse à porta da casa da autoridade. Freud dá outro
exemplo do escravo neozelandês. Ao comer um resto de comida deixada por um
nobre, teve terríveis convulsões estomacais até morrer, após a ingestão do
alimento real.
O conflagrado e explosivo momento político brasileiro seria
um prato cheio para as análises de Freud. É o caso de Eduardo Cunha. Ele
deveria exercer o papel de um totem, em termos
freudianos, para os 513 deputados federais, pelo menos na aparência. Se o
detentor do poder religioso ou político não atendia mais às necessidades
básicas da comunidade, os integrantes se revoltam contra o totem, para salvar
da destruição a base social milenarmente construída por todos. Quando o
ex-deputado afirmou que os seus inimigos queriam a cabeça dele exibida como um
troféu, repetiu-se simbolicamente a mesma ação feita por selvagens vitoriosos vindo da guerra exibindo o crânio dos
vencidos. Se fosse mais sutilmente inteligente para perceber do que para
roubar, Cunha deveria saber que as leis totêmicas ainda estão em pleno vigor.
Eduardo Cunha violou a autoridade
e o respeito que o totem não pode perder. A punição severa foi o retumbante
tombo visto por toda tribo. A
consequente morte política corresponde à falta de proteção que o ex-parlamentar
não deu a todo o grupo tribal, no
caso a Câmara dos Deputados. Ele tinha o dever de preservar algumas normas para
proteger a Casa dos perigos que poderiam advir da sua derrocada, caso fosse
comprovada a falta de medo e temor que o
totemismo requere dos membros de um clã. Sem o totem, o clã deixa de existir.
Então, entre o totem corrompido que põe em risco a existência de todo o
agrupamento e a tradição milenar cultivada há séculos, a saída mais plausível
para evitar o malogro é derrubá-lo a fim de colocar um novo totem no vazio deixado pela obsolescência do outro.
Suscitados pelo deleite particular do cult e do selfie,
vivemos cercados de totens e tabus por todos os lados. Os povos antigos
estudados pelo criador da Psicanálise, ao trazerem a cabeça dos vencidos na
ponta de suas lanças, entoavam lamentos em favor das almas dos mortos. Alguns
rituais de purificação eram feitos nos matadores, sem os quais, não lhes seriam
permitido voltar ao convívio da tribo vitoriosa. Afortunadamente, Freud chamava
isso de ritual de apaziguamento.
Seria muito estranho para os nossos olhos modernos, se todos os inimigos de
Eduardo Cunha fossem vistos na TV chorando
a morte súbita do político que há pouco tempo era o segundo homem mais
importante da República. Somos mais bárbaros
que os primitivos aborígenes australianos.
Chico Castro, 62, é poeta e historiador.