segunda-feira, 19 de setembro de 2016

O Prêmio do Golpe por Chico Castro




Em 1897, Sigmund Freud já trabalhava exaustivamente sobre o horror do incesto. À época, suas preocupações se voltavam para o binômio existente entre os avanços da civilização e a repressão dos instintos. Bem mais tarde, em 1912/1913, publicava um monumental ensaio intitulado Totem e Tabu. Na realidade, o pai da Psicanálise, para além do vasto conhecimento que possuía da alma humana, era igualmente versado em pré-história e em Arqueologia Social. Viciado em cocaína, morreu em Londres, de câncer no palato, em 1939, aos 83 anos de idade. Como psicanalista, ele era um grande escritor.

Em Totem e Tabu, influenciado por Wilhelm Wundt e  Carl Gustav Jung, Freud  analisou as categorias o universo antropológico de saberes antigos, passando pela história dos povos aborígenes da Austrália, da América e da África. Ao estudar esses povos, pôde perceber a existência de uma relação extremamente respeitosa entre o clã e  o totemismo, pois os membros de certas tribos acreditavam que a origem deles residia na figura do totem. Para além dos casos clínicos, não desprezava a  cultura dos povos mais “atrasados” do mundo, a ponto de procurar entendê-los    a fim de captar psicanaliticamente a angústia e o mal-estar das sociedades mais industrialmente avançadas do seu tempo.

Mas, o que  é um totem?
Originalmente, o totemismo era a religião das castas  primitivas. Mantinha viva a base da organização social. O totem podia ser  um animal, um vegetal ou um fenômeno natural, materialmente representado. Visto como um símbolo sagrado, criava  uma relação de medo ou respeito aos que o cultuavam. Ao mesmo tempo em que o sistema totêmico dava proteção ao corpo social, exigia  que algumas restrições fossem fielmente cumpridas, como, por exemplo, a não permissão de relações sexuais impróprias ou casamentos entre integrantes do mesmo clã. No Deuterenômio, livro escrito por Moisés (cap.7,3-4),  Deus proibia que um hebreu se casasse com uma mulher “estrangeira”. Os semitas praticavam a endogamia, cerimônias de casamento entre pessoas aparentadas, ao passo que os nativos estudados por Freud prevalecia a exogamia.

Os aborígenes anteriores aos semitas, criaram a exogamia justamente para não abalar o equilíbrio social exigido pelos preceitos totêmicas, aliás, ainda vigorantes nos dias de hoje, que admite, em tese, apenas o casamento entre pessoas de “famílias diferentes”. Descumprir a regra  resultava na morte automática do infrator ou infratores. Daí o horror pelo incesto, a priori, vigente na mentalidade do século XXI. Os judeus, mais tribais, achavam que o filho ou a filha deveriam ficar sob a proteção da sombra paterna. No entanto, a prescrição levítica não obstou que Salomão, filho do rei Davi,se casasse com a filha do faraó do Egito, tradicional inimigo de Israel. Por sua vez, as filhas de Ló, após a saída de Sodoma e Gomorra, o embriagarem com vinho e mantiveram relações sexuais com o próprio pai, nascendo-lhes a etnia moabita e amonita (Gênesis,cap.19,32).

Qual o significado de um tabu?
Por detrás de qualquer totem havia um tabu ou vários tabus. O totem não pode ser tocado, nem o tabu pode ser quebrado. Mas o que é um tabu?  Via de regra, é uma série de normas  acerca do que se pode ou não ser feito. Freud entendia ser desconhecida a origem do tabu, e que, enquanto para alguns parece ser algo sagrado ou impuro, violento ou natural, sádico ou santo, para outros se insere dentro  de um esquema da mais pura normalidade. Ao contrário das leis de Deus dada a Moisés no Sinai, o  tabu não encontra guarida na escrita. A interdição servia para proteger os fracos e os fortes, os chefes e os sacerdotes, as mulheres e as crianças, à medida que pede acautelamento contra o manuseio de cadáveres, a ingestão de certos alimentos e bebidas. A quebra de um tabu forjou o nascimento dos primeiros tribunais da história.

Achamos que os selvagens eram mortais e cruéis com os seus inimigos. Porém, somos atualmente mais sentenciosos e perversos  com os nossos rivais. Freud verificou que na ilha de Timor, na Indonésia, quando  guerreiros voltavam vitoriosos de uma batalha, traziam as cabeças dos vencidos à mostra. Porém, ao chegarem à tribo, se submetiam a alguns rituais de purificação para amenizar o sofrimento pela alma dos  derrotados. Segundo o costume, a dança e o canto não eram a comemoração da presumida vitória, mas um rito de perdão pela morte dos infelizes: “Não tenhais raiva”, pranteavam os vencedores, “porque vossa cabeça está aqui conosco; se tivéssemos tido menos sorte, nossas cabeças poderiam estar agora expostas em vossa aldeia. Não seria melhor que tivéssemos permanecido amigos”? 

O tabu relacionado aos governantes era bem mais severo. Eles não deveriam ser apenas “protegidos, mas também se deve proteger-se contra eles”. O contato direto com os mandatários podia ser benéfico ou maléfico. O poder de cura se manifestava num leve toque no doente ou no necessitado de cuidados. Mas, em muitos casos, poderia acontecer uma tragédia, como por exemplo, entre algumas tribos africanas, entrar alguém na casa de um sacerdote, poderia ocasionar grandes aflições ou até mesmo a morte a quem chegasse à  porta da casa da autoridade. Freud dá outro exemplo do escravo neozelandês. Ao comer um resto de comida deixada por um nobre, teve terríveis convulsões estomacais até morrer, após a ingestão do alimento real.

O conflagrado e explosivo momento político brasileiro seria um prato cheio para as análises de Freud. É o caso de Eduardo Cunha. Ele deveria exercer o papel de um totem, em termos freudianos, para os 513 deputados federais, pelo menos na aparência. Se o detentor do poder religioso ou político não atendia mais às necessidades básicas da comunidade, os integrantes se revoltam contra o totem, para salvar da destruição a base social milenarmente construída por todos. Quando o ex-deputado afirmou que os seus inimigos queriam a cabeça dele exibida como um troféu, repetiu-se simbolicamente a mesma ação feita por selvagens vitoriosos vindo da guerra exibindo o crânio dos vencidos. Se fosse mais sutilmente inteligente para perceber do que para roubar, Cunha deveria saber que as leis totêmicas ainda estão em pleno vigor.

Eduardo Cunha violou a autoridade e o respeito que o totem não pode perder. A punição severa foi o retumbante tombo visto por toda tribo. A consequente morte política corresponde à falta de proteção que o ex-parlamentar não deu a todo o grupo tribal, no caso a Câmara dos Deputados. Ele tinha o dever de preservar algumas normas para proteger a Casa dos perigos que poderiam advir da sua derrocada, caso fosse comprovada a falta de medo e temor que  o totemismo requere dos membros de um clã. Sem o totem, o clã deixa de existir. Então, entre o  totem corrompido que põe em risco a existência de todo o agrupamento e a tradição milenar cultivada há séculos, a saída mais plausível para evitar o malogro é derrubá-lo a fim de colocar  um novo totem no vazio deixado pela obsolescência do outro.

Suscitados pelo deleite particular do cult e do selfie, vivemos cercados de totens e tabus por todos os lados. Os povos antigos estudados pelo criador da Psicanálise, ao trazerem a cabeça dos vencidos na ponta de suas lanças, entoavam lamentos em favor das almas dos mortos. Alguns rituais de purificação eram feitos nos matadores, sem os quais, não lhes seriam permitido voltar ao convívio da tribo vitoriosa. Afortunadamente, Freud chamava isso de ritual de apaziguamento. Seria muito estranho para os nossos olhos modernos, se todos os inimigos de Eduardo Cunha fossem vistos na TV chorando a morte súbita do político que há pouco tempo era o segundo homem mais importante da República. Somos mais bárbaros que os primitivos aborígenes australianos.

Chico Castro, 62, é poeta e historiador. 

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